Entre a Perda e a Esperança

Como e porque me tornei Produtor Associado do filme da Liga da Justiça

P. H. de Aragão
8 min readJun 29, 2021

“Esse mundo está dividido. São uma espécie primitiva. Involuídos em guerra entre si. Todos separados demais para serem um. […] Esse mundo cairá, como todos os outros.” Lobo da Estepe

Estamos sob ataque. Sofrendo golpes de tiranos ensandecidos, lacaios raivosos e seres zumbificados que se alimentam de medo e ódio. E o resultado são perdas, ruínas e mortos. Pilhas de mortos. Estou falando da realidade ou de um filme?

Falo de um mundo sem lanternas verdes ou kryptonianos. E de como, por vias tortuosas, me tornei produtor da Liga da Justiça de Zack Snyder.

Ciborgue | O Homem Vitruviano

Capítulo 1: Algo mais sombrio

E m 2017, o cineasta Zack Snyder se afastou da produção de seu universo audiovisual dos super-heróis da DC por conta de uma tragédia familiar: Autumn, filha adotiva do diretor, havia tirado a própria vida. Ela era escritora, colaborava com projetos sociais, e só tinha vinte anos.

Desafortunadamente, na mesma época e em vários lugares do mundo, muita gente decidiu caminhar para o abismo, erguendo ao poder vilões tão caricatos quanto maléficos. E na altura de 2021, todos nós temos nossos próprios mortos e tragédias pessoais para chorar. Parece que temos sido vítimas da Equação Antivida.

Solidão + Alienação + Medo + Desespero + Baixa Autoestima ÷ Zombaria ÷ Condenação ÷ Má Compreensão × Culpa × Vergonha × Falha × Julgamento

N = Y, onde Y = Esperança e N = Insensatez, Amor = Mentiras, Vida = Morte, Ser = Darkseid

Ao que parece, o arquetípico vilão de quadrinhos Darkseid faz vítimas bem reais. Como o lado sombrio que há em todos nós, quando não alimentamos a mente de forma correta, até tê-la sequestrada pela ignorância mais convincente da vez.

E em um “novo normal” mais similar a um pesadelo apocalíptico do que gostaríamos de admitir, muitos concordariam com aquela fala amarga do Homem-Morcego: “Faz muito tempo que estou morto por dentro”.

Batman | São Sebastião

Capítulo 2: Não conte com isso, Batman

Quando eu era pequeno demais para saber ler, meu mundo era bastante limitado. Mas se alargava um pouco quando eu me encontrava com os Superamigos na sala — eles na Sala da Justiça, eu na sala de casa.

Não minto quando digo que muito de quem sou se deve às histórias do Homem-Morcego, Mulher-Maravilha, Super-Homem… e Chefe Apache, Samurai e Vulcão Negro. Aprendi a não aceitar as injustiças e a usar os poderes, que à época eu jurava que conseguiria algum dia, para ajudar as pessoas. Então eu cresci e o mundo ficou um pouco menos colorido — e olha que na infância eu assistia a tudo em uma TV em preto e branco.

Parti para estudar e trabalhar atrás das telas. Não fui pra Califórnia e obviamente nunca trabalhei em um blockbuster. Mas me meti com cinema artesanal e projetos públicos e, ministrando vários cursos, palestras e oficinas gratuitas, ensinei mais de mil pessoas a fazerem filmes com o que tinham a mão. Parodiando o lema de um herói da vizinhança: adquiri pequenos poderes que considerei como grandes responsabilidades.

Flash | Hermes

Enquanto isso, no andar de cima, Zack Snyder fazia as adaptações de quadrinhos 300 e Watchmen, depois O Homem de Aço e Batman vs. Superman. Eu não gostava de tudo o que via do diretor, mas considerava algumas opções de estilo e narrativa fenomenais, como o uso de elementos alegóricos e mitológicos, o ritmo e a plasticidade bem pensados e a busca por retratos mais realistas em um mundo em tons de cinza.

Então, o cineasta se afastou pelo inesperado luto outonal de Autumn, depois seu filme foi completamente refeito e adulterado por outro diretor como uma obra “frankenstein” e, do lado de cá do equador, sofremos todas as perdas que já sabemos de cor, e que ainda assim parecem grandes demais para serem verdade.

Infelizmente, a História, os jornais e o cotidiano mostram que catástrofes humanitárias potencializadas por supervilões megalomaníacos são terrivelmente reais. E se os malfeitores travestidos de messias saltam aos olhos, porque os heróis permanecem restritos às páginas e telas? Onde estão nossos super-heróis quando mais precisamos deles?

Aquaman | Poseidon

Capítulo 3: A era dos heróis

Mulher-Maravilha: — Disseram que a era dos heróis jamais retornaria.

Batman: — Vai voltar. Precisa voltar.

Até o início de 2021, o Snyder Cut — como os fãs chamam a Liga da Justiça de Zack Snyder — existiu apenas como uma espécie de lenda urbana ou um capricho não alcançado. Ocupando tuítes exaltados, fotos do que poderia ter sido, faixas em aviões sobrevoando os estúdios da Warner, outdoors na Times Square, mas o mais importante: um movimento de prevenção ao suicídio, reflexo da triste partida precoce de Autumn Snyder.

Sim, em algum momento do clamor pelo lançamento do filme, os fãs de heróis perceberam que poderiam fazer mais que implorar para uma empresa lançar um produto e lhes tomar seu dinheiro. Foi nesta etapa que entrei no projeto, me unindo a milhares de outros nerdões como eu em todo o mundo. O resultado foram doações e atenções voltadas a campanhas para a Fundação Americana de Prevenção ao Suicídio, a AFSP, que puderam e podem fazer com que muitos outros heróis e heroínas anônimas não sucumbam às equações antivida.

No Brasil, o suicídio é a terceira causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos. Nessa infeliz estatística medida em dados da OMS, a Organização Mundial de Saúde, o país fica atrás apenas dos EUA. Então a base de fãs reunida no SnyderCutBR também se mobilizou e criou um movimento louvável junto ao CVV, o Centro de Valorização da Vida — associação civil que presta apoio emocional e luta pela prevenção do suicídio desde 1962.

Na campanha SnyderCutBR+CVV, as pessoas adquirem produtos com estampas exclusivas da Liga da Justiça, criadas por diversos artistas independentes, e 100% do lucro arrecadado é doado ao Centro de Valorização da Vida. Tenho a honra de participar com algumas artes que criei e cedi com carinho a essa causa nobre, no projeto brasileiro aprovado pelo próprio diretor Zack Snyder.

“Você não está sozinho”, diz um letreiro inserido no filme da Liga, enfim completado e lançado após quatro anos de empenho do movimento #ReleaseTheSnyderCut. À altura em que publico este texto você já deve tê-lo assistido. Então sabe que a mensagem de união e luta permeia todo o longa — e bota longa nisso.

Superman | Cristo em Ascensão

Quatro horas de uma história contada sem pressa, em uma época em que os projetos já nascem atrasados. Tons de preto e branco em telas onde imperam figurinhas coloridas. Heróis alquebrados, cheios das dúvidas dos nossos tempos, quando se espera que sejam e sejamos seres eternamente perfeitos em vitrines virtuais impecáveis.

O filme lançado em 2021 tem uma trama bastante parecida com a versão de 2017, mas ao mesmo tempo tão diferente, tão cheio de nuances que é uma obra inteiramente nova. Desde o roteiro bem amarrado escrito por Chris Terrio, passando pela impactante fotografia dessaturada de Fabian Wagner, pela trilha épica pós-moderna de Junkie XL, até o trabalho invisível de formiguinha dos fãs responsáveis pelo lançamento e pelas campanhas sociais. Nas palavras do diretor, todos nós recebemos créditos honorários de produtores associados.

E da mesma forma que o longa disponibilizado na HBO Max é uma produção corporativa de estúdio, produzida com uma equipe imensa, ao mesmo tempo também é um projeto bastante autoral. Não é possível, por exemplo, assistir ao conflito do Ciborgue, o coração do filme, e seu pai tentando resgatá-lo de alguma maneira, e não traçar um paralelo entre o diretor e sua filha em papéis intercambiantes.

Mulher-Maravilha | Joana D’Arc

Capítulo 4: Máquina de Mudança

O novo Liga da Justiça é dedicado a Autumn Snyder, como não poderia ser diferente e, igualmente, não tenho dúvidas de que é um estímulo a todos nós, do fandom e muito além dele, a vencer as nossas batalhas pessoais diárias. Se o lado sombrio já está entre nós, os heróis também estão. Precisam apenas de condições para se desenvolverem.

O gênero da superaventura surgiu nos quadrinhos há quase cem anos, entre crises e guerras mundiais. O mundo era outro, mas ainda é o mesmo. As pessoas continuam buscando por faróis que as orientem num mar revolto.

Superman, Batman e Wonder Woman são produtos ingênuos, mercadológicos, imperialistas? Podemos dizer que sim. São o mais próximo que temos de uma mitologia contemporânea, mundialmente reconhecível, símbolos de esperança para bastante gente? Com certeza.

Décadas após eu assistir ao desenho dos Superamigos em uma TV em preto e branco com tampo de madeira, hoje eu assisto à Justice is Gray na minha tela plana colorida, trajando meu uniforme de “Produtor Associado” do filme. Estou sozinho quando chego aos créditos pela quarta vez, mas sei que há milhares de outras pessoas unidas que usam a arte como combustível, com ímpeto de luta renovado para mandar os parademônios do ódio de volta ao lugar de onde saíram.

Transcriando um pouco a afirmação do reconhecido mitólogo Joseph Campbell: “todos os heróis, toda a Liga da Justiça e todo o inferno de Apokolips estão dentro de nós”. E isso não quer dizer que não existam no mundo real, significa justamente o contrário. Que é tudo o que acreditamos que nos força a fazer a diferença no mundo — a diferença possível no nosso mundo do dia-a-dia.

Cada fã de super-heróis tem potencial para ser um herói em si mesmo. Espero que ajamos sempre de acordo com os ideais dos nossos colegas da Sala da Justiça.

Ciborgue: — Ouvi falar de você. Não pensei que fosse real.

Batman: — Sou real quando útil.

Zack Snyder’s Justice League

P. H. de Aragão é Produtor Associado da Liga da Justiça de Zack Snyder. Mantenha contato: Site | Instagram | Newsletter

Compre os produtos da campanha SnyderCutBR+CVV e ajude a salvar vidas: Site | Loja | Portal

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Written by P. H. de Aragão

Escritor, roteirista, tradutor. Contador de histórias na fronteira entre o real e o imaginário. Guerreiro Zen. instagram.com/phdearagao/

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